segunda-feira, novembro 20, 2006

Moda ou Mudança de Mentalidade?


acrílico s/tela, 40x50cm

Inaugurou a exposição do Amadeo de Souza-Cardoso na Gulbenkian. Se foram lá, não puderam deixar de reparar como nós nas bichas enormes para a bilheteira e depois para a entrada da sala do piso superior. Isto faz-me pensar em várias coisas: qual a razão desta euforia tão disseminada? o ASC é um artista cuja obra é amplamente conhecida e amada e temos agora uma possibilidade única de olhar para os originais? o ASC é um artista conhecido com obra desconhecida e vamos aproveitar a oportunidade para saber de que é que se fala quando se menciona o autor? é uma mostra muito mediatizada e é importante ter ido? vamos a esta como a outras menos mediatizadas porque a arte começa a ocupar um lugar importante nas nossas vidas (é aqui que entra a mudança de mentalidades, o que seria fantástico).

Isto passou-se no sábado à tarde e claro está que só conseguimos ver a sala de baixo. Pensámos que talvez o problema estivesse na escolha do dia e da hora e, provavelmente, no domingo de manhã estaria mais calmo. Nós não pudemos voltar mas uma amiga enviou um desabafo por sms: está tudo igual; o que é que aconteceu aos centros comerciais?

Agora fico-me pelas reflexões, mais tarde gostava de discutir convosco a exposição propriamente dita (até porque me falta ver a sala de cima).

24 comentários:

Anónimo disse...

Eu pessoalmente, apesar do tempo perdido e do incómodo de estar a ver quadros com pessoas a pulular ao lado (atenção que as filas existem porque a Gulbenkian filtra o acesso à exposição o que quer dizer que se consegue ver relativamente bem e o tempo de espera é fora das salas e não dentro), fico muito feliz quando vejo estes lugares cheios mesmo que seja apenas por uma questão de moda. Aliás esse é um fenómeno não exclusivamente portugúês, bem pelo contrário, os museus organizam-se muito à volta de exposições sonantes que atraem multidões, não é?
Mas, respondendo à pergunta, é moda, sem dúvida, e é, também, o facto de o Amadeo ser um grande pintor.

Anónimo disse...

Ainda a propósito de modas, não sei se viram a notícia ontem no Público sobre os 15 minutos de fama do Museu Municipal de Amarante. O dito Museu tem em exposição as obras da Colecção Lamerdim, uma pequena colecção particular do coleccionador alemão Kurt Lamerdin. A da exposição veio da Alemanha com o título Colecção Lamerdin, ora como o nome não diz nada a ninguém o director do museu, António Cardoso, decidiu colocar-lhe o antetítulo "De Rodin a Kandinsky, a Miró...", porque de facto a colecção possui pequenas obras destes artistas. Isto fez com que o Museu de Amarante, dos 10 a 15 visitantes diários, passasse a receber 150 a 180! "É um efeito sociológico: as marcas vendem", explica o director do museu.
E viva o marketing!

cristina disse...

Fantástico! Na realidade só gostamos do que conhecemos. Mas também olha que o nome do coleccionador não indiciava nada de qualidade...

pedro disse...

o fenómeno é global! aliás isto remete para aquele tema do foucault. o marketing artístico existe efectivamente! há autores inflacionados. há autores desconhecidos com enorme valor. há autores que fazem o seu marketing pessoal como ninguém, há autores que são uma desgraça a promover-se, existe isto tudo e sempre existiu. E já que andamos em ciclos nas nossas conversas, queres um exemplo de mau marketing ou de marketing tardio? o el greco.
só saltou para a ribalta salvo erro no séc XIX. Tb tenho por aí algures uma entrevista do alberto carneiro em q diz que isto das exposições, curadores, etc, é tudo uma questão de lobbies ... e ele foi muito ajudado pela FCG.
Quanto ao ASC lá irei mais para a frente, qdo já estiver esquecido. porque foram vcs tão cedo? já parecem o pessoal que ficou a dormir à porta da amazon para terem a play station 3 ... lol
agora vou ali ao outro post comentar, não resisto ...;o)

pedro disse...

esqueci-me de comentar o título do post. eu voto em moda. há muita gente que vai sem entender. é bonito conhecer um artista semi-desconhecido, um quarteto de jazz eslovaco, dizer que o saramago escreve sem pontuação e finalmente que a cultura tem que ter viabilidade económica (foi-se a festa da música) ... modas, maiorias. mas todos sabemos que as modas passam e as maiorias nem sempre têm razão ... felizmente!
amiga L., porque é que o vuillard é tão pouco conhecido?

Luísa R. disse...

Pedro, não sei.
Só sei que gosto muito do sr. Vuillard.

Vou ver se amanhã consigo estar aqui um bocadinho a comentar nos outros posts.

Quanto a este post, concordo com a Sónia: fico muito feliz quando vejo estes lugares cheios.
Decerto que cada pessoa irá com o seu interesse. Uns por moda, outros a acompanhar alguém, outros radiantes por estarem ali, outros a detestarem, etc. Não importa.

Quanto ao Amadeu Sousa Cardoso, ainda não fui ver a exposição. Irei lá mais para diante, quando acabar a euforia dos primeiros tempos. Talvez na semana do Natal, com a preocupação da compra das prendinhas, as exposições fiquem desertas... E então aí poder-se-á visitar sossegadamente a expos. Ou não :o)

cristina disse...

Fui "a correr" ver a exposição porque gosto de ir em família sempre que estamos todos interessados. Ora isso só acontece nalguns fins de semana e calhou nesse estarmos todos. Mas tenho ideia de ter visto a dormir à entrada do Ikea aquando da abertura; ou era alguém parecido?;)

De facto concordo com o Alberto Carneiro (também me lembro dessa entrevista): hoje em dia o marketing é muito importante - se não mesmo fundamental - para o sucesso da carreira artística. Mas em épocas passadas isso não acontecia, penso que pela dificuldade de leitura que provocam normalmente as vanguardas. Na maior parte dos casos (há excepções, como é evidente) os autores aclamados no seu tempo acabaram por perder o protagonismo para outros que foram rejeitados e somente reconhecidos e reabilitados à posteriori. Ou seja, nós continuamos com a mesma dificuldade na leitura de linguagens que desconhecemos mas hoje existe toda uma classe de profissionais que se propõe descodificá-las para nós. Isto, acrescido à forma como a arte é encarada presentemente - basicamente como investimento - traz consigo perigos inevitáveis.

E o Saramago escreve com imensa pontuação, qual é a tua? E quando dizes que as maiorias nem sempre têm razão, Pedro eu vou ainda mais longe e diria que quase nunca têm razão, a não ser aquela que o tempo confere.

Luísa, o que é que te atrai particularmente no Vuillard?

isabel disse...

Consigo sentir o que atrai na Luisa, o Vuillard..

Desculpem meter a colherada, mas tendo a Luisa como prof nestas andanças, quando fui ver as obras do senhor percebi imediatamente. É um realismo suave, tipo Hopper, não é Luísa? :p

Faltam-me os termos tecnicos. :)

Muitos parabéns pelas vossas "conversas". Muito interessantes.

ps: concordo plenamente com a questão de marketing. Pequenas mudanças atraem grandes massas.

Luísa R. disse...

Isabel, fizeste muito bem em ter entrado na conversa. É por isso que elas são feitas aqui. Para também podermos ter outros contributos.

Acerca do Vuillard, não lhe chamaria um «realismo suave» mas entendo o que quiseste dizer.
(O Vuillard fez parte do grupo Les Nabis)

Realmente, conseguiste intuir porque é que gosto do Vuillard :O)
(ao ligares o meu gosto pelo Hopper, pintor que não tem nada a ver com o Vuillard, mas em ambos sinto uma grande interioridade, cada um à sua maneira).

Cristina, gosto do Vuillard por várias razões, entre as quais o intimismo das cenas representadas, a representação do quotidiano, da vida doméstica. A atmosfera serena.
(O intimismo também se reflecte na dimensão das telas, normalmente de pequeno tamanho).

cristina disse...

Eu acho que os quadros Vuillard são um bocado claustrofóbicos. As telas são pequenas, muito cheias de pinceladas muito matéricas e os temas obsessivamente recorrentes. Parece um homem que não saía de casa. A Frida Kalo, que passou a maior parte da vida na cama e se pintou a si própria obsessivamente , no entanto, manifestava nas suas telas um grande desejo de evasão. O Vuillard parece não querer sair do seu pequeno mundo doméstico.

É daqueles autores cuja biografia eu acharia muito interessante confirmar, por aquilo que ele deixa transparecer, mas acho que não existe. Ele fartou-se de pintar, deixou obra que não é brincadeira (e penso que vendia muito bem - até talvez pela pequena dimensão das telas -, pelo menos faz parte de imensas colecções pariculares, assim como o resto dos Nabis, penso eu). A única coisa que se sabe - que eu consegui apurar - é que sempre viveu com a mãe.

A mãe - que devia ser uma pessoa horrivelmente prepotente, a avaliar pela sua representação nos quadros do Vuillard - está presente em inúmeras telas, o que demonstra bem o peso que tinha na vida dos filhos. Isto a acrescentar à forma como ele representa a irmã - em posturas submissas, sempre encolhida, dobrada, cosida contra as paredes, em contraponto à figura altiva e autoritária da mãe, denuncia realmente um drama doméstico representado a um ritmo diário.

Ok, e depois?

PS - atenção que não estou aqui a discutir o gosto e sabes que acredito que o motivo que nos leva a estabelecer uma relação com uma obra de arte é sempre uma questão de pele, às vezes inexplicável até à posteriori (muitas vezes, na análise racional posterior, percebemos o porquê do enamoramento, mas outras vezes não). E é esse processo que me interessa, até porque posso estar a negligenciar aspectos que estão contidos na obra e, se alguém me chamar a atenção para eles, a minha opinião pode mudar.

pedro disse...

Não podias estar mais distante do vuillard (aliás ainda bem, porque me pareces bastante mais nova). Admito que possas achar as telas claustrofóbicas. Mas estragas tudo com a subjectividade da dimensão das telas, a densidade da incelada e a recorrência dos temas. Vamos por partes: 1) uma estatistica de merceeiro aplicada às obras expostas no único documento que me vai servir para defender o vuillard nesta barra, indica que consideras como pequenos formatos os cerca de 30 em 100 trabalhos com dimensão superior a meio metro. Por outro lado, será a dimensão um aspecto a (des)valorizar num artista plástico? 2) a pincelada matérica densa; queres que te mande imagens de quantos pós impressionistas? Não te esqueças de enquadrar o pintor na época ... 3) quanto aos temas obssessivamente recorrentes: Morandi? O facto de o vuillard não querer sair do seu mundo doméstico
é a tua leitura, mas há outras. Ele tb tem alguns "exteriores"
que te posso mostrar. Eu tenho outras leituras, mas o que me fascina nele é a síntese, que aliás dá nome ao "synthesism" dentro do nabis. Com a história da biografia, obrigaste-me a ler partes do livro em que nunca toquei. Então, da leitura em diagonal rápida (dramática ;o)), pode "ler-se" o seguinte: 1) a mãe não consta que fosse prepotente e teve tanto peso nas telas como a irmã, a sobrinha ou alguns amigos, mais uma vez com contas de merceeiro consegui "percentar" isto dos cerca de 100 trabalhos do
livro; não há referência a qq tipo de "sofrimento" psi do miudo/graudo relativamente à mãe ... acho apenas que o tipo se encostou às sopas lá de casa; ... nesse caso a educação marista tb deve ser investigada ao mesmo nivel q a relação com a mãe ... 2) até porque, este nosso amigo, passou um periodo nos bas-fond com uma incursão no teatro (cenários), onde deve ter entrado numas brincadeiras com coristas, etc, etc, (há um quadro pecaminosos dele num beijo, tzz-zzz-z ;o)) e de onde saiu, supostamente, com o que tu dizes ser a parte saturnina dos seus trabalhos: é daqui que saem as pinceladas matéricas (técnica "à la colle" dos cenários)
e o confinamento, solidão e castração dos seus quadros: a identificação essa sim obssessiva com um estilo de teatro então modernista liderado por Ibsen e Maeterlinck - "the theatre of doubt". os biografos atribuem mais os seus temas a esta experiencia no teatro do que a qualquer recalcamento juvenil.
Já chega, para já ;o)
bjs

PS: desde quando ter uma vida excitante é receita para ser um grande pintor? estou a lembrar-me também do Hopper ... não há vida mais "average" que a dele ...

cristina disse...

Bem, já vi que toquei num ponto sensível... vou ter que ter cuidado quando sair à rua porque posso ser atacada pelo gang do Vuillard.:)

Talvez não me tenha explicado bem: acho - dum modo geral, tanto quanto é possível tecer considerações gerais acerca da obra de um artista - que as telas dele são claustrofóbicas. Se olharmos para uma reprodução, pela quantidade de informação contida (os padrões de cada tapete, do papel de parede, dos pormenores dos vestidos, etc) ficamos com a sensação de que o tamanho da tela original é grande e surpreende o muito comum formato de 22x29cm, 23x27, 24x33, etc. A tua estatística de merceeiro não me convence por 2 razões: 1ª o total das obras ultrapassa largamente as 100 mencionadas; 2ª 50cm continua a ser um pequeno formato, vá lá, um médio formato, se quiseres. Mas é verdade, se procurarmos bem, devemos ter formatos bastante maiores porque ele recebeu muitas comissões para pintura de painéis para decoração de salas. Mas o que é facto é que a sua obra é caracterizada pelo pequeno formato.

O que eu quero dizer não é que abomine o homem; reconheço que tem trabalhos particularmente conseguidos, mas toda a vida (e foi longa) pintou o mesmo, não arriscou outros caminhos. Isso não lhe retira qualidade mas também não faz dele um génio ignorado por questões de marketing (que foi o que despoletou esta intriga).

Eu sei que ele também tem exteriores - aliás muito idênticos aos do Bonnard - e tem algumas naturezas mortas muito depuradas de pormenores, mas não acho que seja isso que caracteriza a sua obra. Aceito que me digas que esta é uma visão um bocado superficial e que, se estudar a fundo a obra do rapaz lhe descubro particularidades fantásticas; era isso que esperava de ti e da Luísa porque o estudaram melhor.(eu sou um pouco como o Calvin, que manda os outros fazerem os trabalhos de casa por ele, provavelmente ainda não tinhas reparado).

O peso que eu acho que a mãe tem nos seus quadros não é só na frequência da representação, mas principalmente no espaço pictórico que ocupa e na forma como o faz, i.e., na postura autoritária que adopta. Posso referir 2 quadros em que isso é mais notório, até por ela estar em oposição à figura da irmã do pintor: "The Conversation" - a rapariga está em atitude defensiva, atrás duma cadeira (podia até estar a arrumá-la não fora o título do quadro) e aquele em que é absolutamente notória esta relação de poder "Interior, mother and sister of the artist" - a mãe ocupa a maior parte do espaço, sentada em posição frontal, com as pernas afastadas e as mãos nos joelhos inscrita numa fortíssima mancha preta e a rapariga num canto da tela, dobrada para caber nela, com o padrão do vestido a confundir-se com a parede contra a qual ela se funde, numa atitude frágil e temerosa. Como te disse, nunca li nenhuma biografia dele, esta é apenas uma impressão que fica da leitura de alguma obra.(tá bem, posso ser um bocadinho porteira, ouço uma mosca e falo num "bombardeiro" ao 1º vizinho que encontro).

E é claro que não é o tipo de vida que tens que faz de ti um bom ou mau artista ou até um artista tout court. A história está cheia de exemplos de fulanos normais, evidentemente. A questão é o que fazemos com a nossa vida, com as nossas experiências.

Luísa R. disse...

Cristina,
Penso que nas nossas respostas vamos dizendo o que gostamos nos trabalhos do Vuillard.

Outra coisa: nem acho que o sr. seja um génio (que é um conceito que normalmente ponho em causa. Nem sempre, mas normalmente... Acho que há muitos factores que concorrem para o trabalho excepcional, seja na ciência, na arte ou noutro campo qualquer, mas isso daria outro post e outra discussão), nem acho que seja ignorado.

Mais tarde, vou tentar dar mais algumas achegas à questão do Vuillard. Agora, tenho de ir.
Bjs

pedro disse...

Vizinha, tem de haver alguma coerência nas tuas intervenções, para ver se te entendo: 1) caraterizas o rivera apenas por ser um pintor de grandes formatos? 2) achas o morandi obssessivo pela recorrência a copos e jarras? 3)tens tb uma leitura psicanalista das pessoas gordas do botero?
4) a frida khalo tem o valor artístico inflacionado pela sua vida pessoal? Se responderes que sim a tudo, acho que te entendi, senão ...
Para mim, o vuillard ainda é uma referência por ser um tipo que está na origem do sintetismo em pintura, coisa que eu ainda estou longe de atingir mas que quero atingir nalguns dos meus trabalhos, para parar de me torturar com as tintas :o). talvez depois dessa fase o vuillard passe para segundo plano. mas compreendo que não diga nada a outras pessoas. ando à procura de uma imagem do vuillard que conto enviar-vos e que resume tudo o que penso dele. A mãe costureirinha maravilha e a irmã submissa poderão ter tido um papel determinante na sua pintura, mas aí há outra contradição tua: se ele mostrou isso mesmo, nesse caso a pintura dele é interventiva! para já a senhora devia ter tido mais cuidado para não ficar para a posteridadae de pernas abertas ... é um desleixo, naquela idade ... orfão em tenra idade, mãe gorda, filhos castrados, tio que se dedicava aos texteis ... tudo isto pode ter tido relevãncia nas composições mas o que fica para a história da arte como contribuição do vuillard são as soluções pictóricas, não os factos. Aliás, em toda a pintura. Isso remete para o foucault. Aqui discordamos: para mim não é primordial que o bacon fosse gay e bêbado, ou se o richter era da RDA, ou mesmo que o picasso era um sacana para o matisse, ou o gaugin para o van gogh ... interessam-me as soluções que cada um destes tipos encontrou para se expressar em pintura.
Declino responsabilidade no piano que vai cair á tua passagem perto do varandim ... beijos do pedro hobbes

cristina disse...

A montagem da exposição é na 2ª e acho que não consigo acabar as telas que tinha pensado levar e a culpa é toda vossa! Se calhar vou ter que levar uma coisa mais antiga.

Mas não resisto e vou tentar responder a tudo, porque isto está interessantíssimo.

A tua pergunta inicial, Pedro, é falaciosa porque inclui o advérbio "apenas". Posso não caracterizar o Rivera "apenas" pelos grandes formatos mas é óbvio que , quando penso em Rivera, imediatamente penso em murais. A imagem do Botero são as figuras obesas, como posso associar a impetuosidade ao Van Gogh , o exotismo ao Gauguin, o calculismo científico ao Seurat, sem com isso pretender reduzir as respectivas obras a uma simples expressão.

Não percebi muito bem o que queres dizer com isso da obra da Frida estar inflaccionada pela desgraça que foi a vida dela; eu acho que a sua obra reflecte uma imensa consciência da condição de clausura a que a obrigou o próprio corpo e o seu consequente desejo de evasão.
A obra é sempre condicionada pela experiência de vida; a questão é que um artista tende a transformar os problemas em questões plásticas, porque é a linguagem que melhor domina. Ou seja, o que nos move a todos é basicamente o mesmo: grandes questões como a nossa relação com o universo, a morte, o amor, e pequenas/grandes questões relacionadas com o quotidiano (como é que pago a renda, por exemplo). O matemático, o poeta, o filósofo, o pintor, têm uma abordagem diferente de acordo com as suas valências.

Discordo em absoluto com a atribuição do Sintetismo ao Vuillard. Só mesmo no principiozinho de carreira é que ele foi de alguma forma sintético, mas rapidamente se deixou deslumbrar pela sumptuosidade dos padrões que deviam pulular pela casa. Os criadores do Sintetismo foram o Gauguin e o Émille Bernard, nas formas planas, sintetizadas, nas cores fortes e vibrantes, nos contornos vigorosos.

No fundo, no fundo, estamos todos de acordo numa coisa: não é o facto de serem alcoólicos, homossexuais, infiéis, deficientes, pobres, ricos, felizes ou infelizes que os torna artistas. E podemos admirá-los apenas pela expressão plástica das suas obras. Mas é também no conhecimento das suas experiências e no contexto histórico das suas vidas (as influências artísticas, sociais, científicas, etc, a que estiveram expostos) que conseguimos um entendimento mais profundo das suas obras. Para vocês (nós) é indiferente que o Bacon fosse gay e alcoólico mas para ele não era e isso foi obviamente importante na sua vida e reflectiu-se na sua obra, quer queiramos quer não.

Luísa, esta discussão começou porque eu percebi que tu e o Pedro consideravam o Vuillard injustamente esquecido. Senão tivesse havido esse quiproquo, a esta hora estávamos todos felizes e contentes a achar que o Vuillard, como todos os que o precederam e os que lhe sucederam, deu o seu contributo para a história da arte e ponto final. Não estaria eu em risco de levar com um piano em cima da cabeça, nem o Pedro a bater com os costados na prisão. Quem sabe, Pedro, se essa estadia em Pinheiro da Cruz não te levaria a resolver duma forma genial os problemas artísticos que te atormentam?

E penso que já só me falta responder à última questão da Luízinha ("Normalmente, não vou pela interpretação. Interessa-me a pintura."). É claro que sim, que é a pintura que nos interessa a todos, mas não consegues nunca dissociar a interpretação do processo de fruição. Pode ser a tua interpretação imediata, das associações que fazes, ou podes querer fazer uma análise mais profunda e aí deves ter em linha de conta a intenção do autor.

Bjs

Luísa R. disse...

Não acho que o sr. Vuillard seja injustamente esquecido ou ignorado, assim como não acho que seja um génio.
Gosto muito do dito sr., mas nem é dos meus mais que tudo :)

No entanto, tem sido um bom pretexto para pensarmos sobre a forma como vemos e sentimos a arte.
Também acho que a discussão está bastante interessante.

Quanto à interpretação das obras de arte...
Não sei se consigo dizer tudo o que penso acerca deste assunto.
Penso que não.
O tema não se esgota nos 2 exemplos que passo a dar. Longe disso.
Mas talvez estes exemplos me ajudem a balizar a questão:

- Guernica -
É inevitável. Tem um assunto. É francamente político.
Claro que quando a vejo, penso na pintura, mas também em tudo o que a Guernica representa.
Presta-se, portanto, também a uma interpretação.

- Mona Lisa -
Não conseguirei aqui exprimir o quanto me irrita as inúmeras teorias acerca desta obra.
E como a apreciação desta pintura é completamente toldada pelas inúmeras interpretações.
Aqui sinto que muita gente está mais interessada num suposto mistério acerca da identidade da figura representada que na fantástica pintura que realmente é.

Concluindo: depende.
E que também é só a minha maneira de ver este assunto.
Não tenho respostas exactas. Continuo a procurar, a questionar e a questionar-me.

Luísa R. disse...

Quanto à Frida Khalo:

Em Portugal, no CCB, a exposição teve como título «Frida Kahlo, 1907-1954. Vida e Obra».
O sub-título poderia ter sido: «Desgraças e sofrimentos» que ía dar ao mesmo...
Pronto, na exposição havia lá um cantinho sobre algumas tradições do México...

Na Tate Modern, foram muito mais longe.
Para quem esteja interessado, aqui vai o endereço da «Conferência «The Many Faces of Frida Kahlo» realizada na Tate Modern em 30 de Setembro e 1 de Outubro de 2005 (por ocasião da exposição).

Por sorte, temos acesso on-line.
Garanto-vos que vale a pena.

pedro disse...

ainda propósito de um comment da cristina neste post: eu acho que não disse que o vuillard era o criador do sintetismo, mas deu-lhe mais impulso que o Gauguin, até porque li algures que o Gauguin acaba por renunciar a este conceito recorrendo a um franco-trocadilho bem duro ... se o arranjar, mando. Eu não vejo o sintetismo que explorou o vuillard e o seu grupo nos quadros que conheço do Gauguin. Dá-me algum exemplo calvin ...

cristina disse...

Assumindo que o sintetismo não renuncia à bidimensionalidade da tela, pelo contrário, a reforça, que pretende a simplificação da forma, a pureza das cores e procura a transcrição de ideias abstractas ou sentimentos recorrendo ao simbolismo, eu diria que um bom exemplo do Gauguin será "A visão depois do sermão ou a luta de Jacob com o anjo". Agora, para a troca, dá-me tu uma definição do sintetismo e um exemplo do vuillard para ilustrar. :)

pedro disse...

estive a ver a tua sugestão do gauguin e não vejo semelhanças com o sintetismo dos nabis. o sintetismo que falei é mais arrojado. O Gauguin assume realmente o sintetismo inicial, que preconizou, mas não chega aos limites que os nabis tentaram. vou mandar-te por mail o melhor exemplo do vuillard e depois continuamos a discussão que está muito boa. bjs

pedro disse...

em vez de mandar por mail, mando o link, para todos poderem ver. atenção que o link vai em duas linhas; só teem que colar as duas partes do endereço (o espaço para comment trunca endereços longos):

http://www.artandarchitecture.org.uk/
images/gallery/783c9f23.html

este foi aliás o primeiro trabalho que conheci do vuillard e que me fez ficar muito interessado nele. Penso que aconteceu o mesmo com a luisa, não sei ...

cristina disse...

Eu continuo a achar que a obra do Vuillard muito rapidamente deixa de ter a ver com o sintetismo. O grupo dos Nabis forma-se tendo como ídolo o Gauguin e o Maurice Denis estabelece os fundamentos teóricos do sintetismo (tendo como referência o Gauguin e fazendo, ele próprio, uma leitura própria mas sempre com uma linguagem plástica bastante sintética). Como não houve cisões no grupo, até porque o Vuillard era pouco dado a teorias, estava mais interessado na produção artística efectiva, os fundamentos mantiveram-se, embora a prática, quanto a mim, tivesse seguido outro rumo.

No quadro do qual enviaste o link, nota-se, de facto, uma grande economia de meios para uma maximização de informação, ou seja, está lá tudo, o ambiente estranho, improvisado (parece que esta mulher instalou provisoriamente um lar num armazém), a luz, que se percebe ser matinal, o biombo que separa provavelmente a zona de estar com o sofá, da zona de dormir. Ou será que isto representa um atelier de artista e ela pode ser o modelo no final da sessão ou mesmo a amante do artista?
É isto que é fantástico na arte, é fazer-nos pensar em coisas que nos passariam completamente ao lado.
Já repararam que devemos à pintura e à poesia a apreciação do céu, por exemplo?

pedro disse...

Sim, deixa de ter a ver com o sintetismo em que se inspiraram. De qq forma, por uma questão de economia de "ismos" poderá dizer-se que o sintetismo dos nabis é uma evolução (interpretação) do de gauguin ...
Quanto à tua análise do quadro que sugeri do vuillard, parece mesmo que é uma atmosfera matinal, como dizes, o que me coloca uma dúvida (quase) teórica. A minha pergunta é: esta percepção com que pelo menos nós dois ficamos, eu diria quase incosnciente, é dada pela predominância de azul perto da janela? pela inclinação da fonte de luz? pela composição que inclui a janela? gostava de saber a vossa opinião ...

cristina disse...

Será por causa da crueza da luz? É de manhã que o sol é mais inclemente, diria eu.