sexta-feira, março 30, 2007

pronto, pronto ...


[acrílico s/ tela, 120x90 cm]

Pintar/desenhar de memória. É possível? É preferível usar modelos? "Os desenhos de memória não vibram"; "não transmitem o momento"; "com modelo encontram-se coisas fantásticas impossíveis de obter de memória ...", etc, etc. Ponho isto à discussão, juntando tb um pequeno texto do mestre almada, para aumentar a confusão ;o)

“Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis.
A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas.
Umas numa direcção, outras noutras;
umas mais carregadas, outras mais leves;
umas mais fáceis, outras mais custosas.
A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor!
Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração

e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor,
e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas.
Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas
com que Deus faz uma flor!”

15 comentários:

Luísa R. disse...

Adoro esse texto...
E emociona-me sempre.



Quanto ao pintares de memória, já sabes o que penso disso.
Pouco sei sobre as desvantagens desse processo, como algumas pessoas consideram.
O que eu sei é que faz parte de ti. Constróis as imagens por esse processo.
E eu gosto muito do teu trabalho, como sabes.
Portanto, não sei o suficiente para perceber porque não deves pintar de memória para criares um universo muito particular, como é o caso.

cristina disse...

Em primeiro lugar, o blog já sentia a falta da tela Chiriquiana (hiiii, que coisa feia, dita assim). Palavras para quê? És um artista português e, embora não uses pasta medicinal Couto (assim se vê como eu sou antiga) eu sou candidata a essa obra.

Eu concordo com os modelos. Ajudam a resolver muita coisa. E acho que não prejudicam nada o tipo de construção pictórica que tu fazes, pelo contrário. Isto é, tu lanças a composição no papel, na tela e depois podes recorrer a modelo para fazer a mão, as proporções do tronco, a sombra projectada, sei lá, os problemas que vão surgindo, não é preciso encenar o quadro todo, evidentemente. Mas ajuda a evitar o empastelamento da pintura na procura das formas. Digo eu...

pedro disse...

Se o Chirico "ouve", dá voltas na tumba ;o)
Eu não sou contra os modelos, sou é preguiçoso e acho sempre que consigo resolver os problemas de memória, intuitivamente. Por exmplo, conseguimos com alguma facilidade projectar sombras de memória, recorrendo exclusivamente à optica linear. Mas se as fontes de luz são dispersas e com incidências diferentes, as coisas complicam-se. E há coisas que não se conseguem de memória. As tonalidades e diferntes luminosidades de uma parede, p ex, são impossíveis reter ou intuir. Nestes casos, o modelo pode ajudar, assim como a fotografia (que tb é um modelo 2D). Agora o que pergunto é se tb não será interessante/válido "inventar realidades" e fazer isto por sistema, assumido como percurso quase único. Um professor falou-me em modelar os cenários em barro, fazer pequenas peças e iluminar para criar atmosferas semelhantes ao que se quer representar. Mas é impossivel recriar desta forma, isto só resolve em parte e até pode induzir noutras interpretações (piores ou melhores). Eu acho que não é por aqui que se "resolve" um problema ou se transforma um bom num mau trabalho. É que cada vez que faço um modelo perco muita energia, como este que fiz aqui "http://farm1.static.flickr.com/117/293063936_a8b395f27e.jpg?v=0" para tentar chegar perto do quadro do matisse ... os meus vizinhos adoraram ;o)
Se dermos uma espreitadela só em matisse (mas tb em picasso) vemos o recurso a muitas soluções não modeladas (contornos escuros a circundar cabeças, interrupção de matéria, distorção de formas, ...) que gostava de perceber melhor. Há uns quadros do matisse que são paradigmáticos ...

cristina disse...

No link do flickr a fotografia não está disponível, não falta qualquer coisa? Fui lá há uns dias atrás e tentei agora outra vez, mas a situação mantém-se.

Gostava de ver isso para comentar o post.

cristina disse...

Achei fantástica, a tua escultura, é uma recriação tridimensional desse quadro belíssimo. E que põe problemas adicionais ao modelo pintado, como seja resolver os centros de gravidade - o que, por sua vez, implica na escolha do material a usar, na escala escolhida, etc. Achas que podes postar a fotografia, uma vez que não está acessível e todos poderem ver do que se está a falar?

O esforço de que falas não foi na construção dum modelo, mas sim na execução duma escultura (ou de várias, consoante o ponto de vista) , o que é bastante diferente.

O que eu mantenho, é que é mais fácil conhecer as regras para depois as subverter. Mas é evidente que corremos sempre o risco de não conseguirmos libertar-nos de todos os ensinamentos.

Ocorreu-me agora que aqueles que não tiveram educação formal e criaram, por isso, linguagens absolutamente inovadoras, não conseguiram depois subverter as suas próprias linguagens.(foi um pensamento do momento, é bem possível que me esteja a esquecer de exemplos que deitem por terra esta teoriazinha).
Mas o Picasso, que teve formação académica, foi capaz de infringir tudo até ao fim. Com uma sensibilidade apuradíssima, apanhava qualquer brisa inovadora dos seus colegas e explorava-a até ao osso, num constante exercício de auto-recriação.
É a vossa vez de me saltarem em cima com as garras afiadas...

pedro disse...

o teu ultimo parágrafo, pensando bem ... fui ver as biografias nos livros que tenho por aqui. Descobri apenas 2 pintores que não tiveram formação académica, um é português, o mário botas e outro não, o bacon. Claro que não vi todos, mas os que vi (picasso, freud, hopper, schiele, richter, kandinski, etc, etc ... vi uns 20) tiveram todos formação académica em artes e nalguns há uma forte influência artistica dos pais ou um ambiente de arte na infância. O caso paradigmático do pintor "absolutamente inovador" sem formação é mesmo o bacon!
conhecem mais algum?
Quanto a libertarmo-nos dos ensinamentos para inovar: há um sem número de pintores famosos que pouco inovaram ao longo da sua obra. Mas o bacon que não teve formação tb pouco inovou ao longo da curta vida de pintura. Foi inovador mas só uma vez ;o). o picasso inovou várias vezes, sempre em saltos quanticos bem diferenciados e penso que o richter tb poderá ir pelo mesmo caminho. Mas há inúmeros exemplos de pintores que mantiveram um estilo próprio sem "desvios" significativos e que são fantásticos.
Eu já ficaria satisfeito em dominar uma linguagem, e para isso preciso das bases ... para as subverter nem que seja uma vezinha ;o).
fico agora á disposição para os saltos e as garras

cristina disse...

Assim de repente, diria que a Frida Kahlo, o Max Ernst, o Jean-Michel Basquiat, o Gauguin, o Rothko, o Henri Rousseau, o Van Gogh, o Jasper Johns, foram essencialmente autodidactas.
Depois ainda temos os casos daqueles que, tendo tido formação académica, foram considerados maus alunos - como o Columbano, por exemplo - para chegarmos não sei bem a que conclusão. Ou melhor, acho que sei: é que não há teoriazinhas que resistam. Não é o diploma que garante o génio, nem a validação pelos pares ou pelo público. É algo mais indefinido porque dependente de variadíssimos factores, todos eles relevantes, mas nenhum que consiga a proeza de ser o necessário e suficiente. Concordam?

pedro disse...

acho um optimo resumo! assunto encerrado. Porém, acho que não concluímos sobre pintar de memória.
Passemos a outro post, mas antes, impõe-se um esclarecimento: a escultura do link não foi feita por mim, era uma brincadeira como vcs já sabem ... o meu género é bem diferente, como podem ver neste trabalhinho que fiz em tempos "http://humanities.uchicago.edu/
faculty/mitchell/glossary2004/
sculpture/david.gif"

Luísa R. disse...

Este trabalhinho que fizeste em tempos está muito bom!
Tu tens jeitinho.
Continua a trabalhar que és capaz de ter futuro.
A propósito, também gostei muito deste teu trabalho.
Continua!

pedro disse...

lol, sim, o trabalho que me deu esculpir com fato de mergulho ...

rupigo disse...

gosto deste ...
a teoria e a pseudo-filosofia não acrescentam absolutamente nada.
:)

pedro disse...

claro, gajo. continuo com esperança de me livrar de ambas ... mas ainda estou longe. talvez um dia consiga pintar autonomamente ;o)

Luísa R. disse...

Já vi que o link do meu comentário anterior foi ao ar. Acontece aos melhores links. Como era o caso.

Por isso, quando digo: «(...) A propósito, também gostei muito deste teu trabalho.
Continua!», claro que me estava a referir à
Fontana di Trevi.

rupigo disse...

a teoria dá jeito por uma questão de sanidade e proposito .. suponho ... tudo tem de ter um proposito ... ou os quadros afundam-se em ruido branco e levam-te com eles.
a nao ser que a tua vida seja cheia de si mesma e a arte passe a um mais espelho espelho ... ou tudo isto não é objectivável, que o pensamento está cheio de loops falsos.

como a filosofia ... é erro pensar que se pode "filosofar" com distancia suficiente para abarcar a própria natureza humana.
ou então é sono.

a via mais saudável é não ser escravo da obra mas dono da própria vida. assim a fonte nunca seca.

pedro disse...

gajo, o que é objectivável é o retorno a si mesmo. Concordo com a volatilidade do propósito, mesmo que filosofado em loops ;o)
Por outro lado, não poderia estar mais de acordo com as duas ultimas frases, mas acrescento que no sistema espelho a imagem é já em si limitada , tal como o objecto filosófico. Naquele caso, seria sempre redundante a "criação" e, das duas uma, ou nunca teria havido mestres, ou todos seriam escravos ... eis a minha dúvida